Sobrevivi... o relato do caso Maria da Penha
Em 1998, o CEJIL-Brasil (Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e o
CLADEM-Brasil (Comitê Latino-americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da
Mulher), juntamente com a vítima Maria da Penha Maia Fernandes, encaminharam à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA) petição contra o Estado
brasileiro, relativa ao paradigmático caso de violência doméstica por ela sofrido (caso
Maria da Penha n.º 12.051).
As agressões e ameaças foram uma constante durante todo o período em que
Maria da Penha permaneceu casada com o Sr. Heredia Viveiros. Por temor ao então
marido, Penha não se atrevia a pedir a separação, tinha receio de que a situação se
agravasse ainda mais. E foi justamente o que aconteceu em 1983, quando Penha sofreu
uma tentativa de homicídio por parte de seu marido, que atirou em suas costas,
deixando-a paraplégica. Na ocasião, o agressor tentou eximir-se de culpa alegando para
a polícia que se tratava de um caso de tentativa de roubo.
Duas semanas após o atentado, Penha sofreu nova tentativa de assassinato por
parte de seu marido, que desta vez tentou eletrocutá-la durante o banho. Neste momento
Penha decidiu finalmente separar-se.
Conforme apurado junto às testemunhas do processo, o Sr. Heredia Viveiros
teria agido de forma premeditada, pois semanas antes da agressão tentou convencer
Penha a fazer um seguro de vida em seu favor e cinco dias antes obrigou-a a assinar o
documento de venda de seu carro sem que constasse do documento o nome do
comprador. Posteriormente à agressão, Maria da Penha ainda apurou que o marido era
bígamo e tinha um filho em seu país de origem, a Colômbia.
Até a apresentação do caso ante a OEA, passados 15 anos da agressão, ainda não
havia uma decisão final de condenação pelos tribunais nacionais, e o agressor ainda se
encontrava em liberdade. Diante deste fato, as peticionárias denunciaram a tolerância da
Violência Doméstica contra Maria da Penha por parte do Estado brasileiro, pelo fato de
não ter adotado, por mais de quinze anos, medidas efetivas necessárias para processar e
punir o agressor, apesar das denúncias da vítima. A denúncia sobre o caso específico de
Maria da Penha foi também uma espécie de evidência de um padrão sistemático de
omissão e negligência em relação à violência doméstica e familiar contra as mulheres
brasileiras.
Denunciou-se a violação dos artigos 1(1) (Obrigação de respeitar os direitos); 8
(Garantias judiciais); 24 (Igualdade perante a lei) e 25 (Proteção judicial) da Convenção
Americana, dos artigos II e XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem (doravante denominada "a Declaração"), bem como dos artigos 3,
4,a,b,c,d,e,f,g, 5 e 7 da Convenção de Belém do Pará.
Uma vez que no caso Maria da Penha não haviam sido esgotados os recursos da
jurisdição interna (o caso ainda estava sem uma decisão final), condição imposta pelo
artigo 46(1)(a) da Convenção Americana para a admissibilidade de uma petição,
utilizou-se a exceção prevista pelo inciso (2)(c) do mesmo artigo, que exclui esta
condição nos casos em que houver atraso injustificado na decisão dos recursos internos,
exatamente o que havia acontecido no caso de Penha.
Neste sentido, assim se manifestou a Comissão: “considera conveniente lembrar
aqui o fato inconteste de que a justiça brasileira esteve mais de 15 anos sem proferir
sentença definitiva neste caso e de que o processo se encontra, desde 1997, à espera da
decisão do segundo recurso de apelação perante o Tribunal de Justiça do Estado do
Ceará. A esse respeito, a Comissão considera, ademais, que houve atraso injustificado
na tramitação da denúncia, atraso que se agrava pelo fato de que pode acarretar a
prescrição do delito e, por conseguinte, a impunidade definitiva do perpetrador e a
impossibilidade de ressarcimento da vítima (...)”.
Importa frisar que, à época, o Estado brasileiro não respondeu à denúncia
perante a Comissão.
No ano de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu
Informe n.º 54 de 2001, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e
tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres, recomendando, entre
outras medidas:
A finalização do processamento penal do responsável da agressão.
Proceder uma investigação a fim de determinar a responsabilidade pelas
irregularidades e atrasos injustificados no processo, bem como tomar as
medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes.
Sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da
agressão, a reparação simbólica e material pelas violações sofridas por Penha
por parte do Estado brasileiro por sua falha em oferecer um recurso rápido e
efetivo.
E a adoção de políticas públicas voltadas a prevenção, punição e erradicação da
violência contra a mulher.
O caso Maria da Penha foi o primeiro caso de aplicação da Convenção de Belém
do Pará. A utilização deste instrumento internacional de proteção aos direitos humanos
das mulheres e o seguimento das peticionárias perante a Comissão, sobre o
cumprimento da decisão pelo Estado brasileiro, foi decisiva para que o processo fosse
concluído no âmbito nacional e, posteriormente, para que o agressor fosse preso, em
outubro de 2002, quase vinte anos após o crime, poucos meses antes da prescrição da
pena. Entretanto, é necessário ainda, que o Estado brasileiro cumpra com o restante das
recomendações do caso de Maria da Penha. É de direito o que se reivindica e espera que
ocorra.
O relato detalhado do caso pode ser encontrado no livro “Sobrevivi, posso
contar” escrito pela própria Maria da Penha, publicado em 1994, com o apoio do
Conselho Cearense dos Direitos da Mulher (CCDM) e da Secretaria de Cultura do
Estado do Ceará.
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