Roteiro
O Negro Bonifácio
CENA 01 – Ext/dia – pátio da Carreira
Dois cavalos passam enfileirados. Um sai da formação. Os cavaleiros se olham, se estranham. Povo na volta da cancha. Uma mulher olha para um cavaleiro, depois para outro.
BLAU
Espera aí, vivente! Antes que o índio velho vá desligar a água do mate, me escute: sou Blau Nunes, vaqueano por opção e gaúcho graças a Deus. E vou lhe contar essa história que ocorreu lá pras bandas do Rincão do Terêncio.
CENA 02 – TUDINHA
Moça passa na rua sob o olhar atento de homens que passam no sentido contrário e de outros que estão sentados a uma mesa bebendo.
BLAU
(OFF)
Tudo começa por causa da Tudinha. A Tudinha era a chinoca mais candongueira que havia por aqueles pagos. Alta e delgada parecia assim um jerivá ainda novinho, quando balança a copa verde tocada de leve por um vento pouco, da tarde. Tinha os pés pequenos e as mãos mui bem torneadas; cabelo cacheado, as sobrancelhas finas, nariz alinhado. Mas o rebenqueador, o rebenqueador..., eram os olhos!...Os olhos da Tudinha eram assim a modo olhos de veado-virá, assustado: pretos, grandes, com luz dentro, tímidos e ao mesmo tempo haraganos... pareciam olhos que estavam sempre ouvindo.., ouvindo mais, que vendo...Face cor de pêssego maduro; os dentes brancos e lustrosos como dente de cachorro novo; e os lábios da morocha deviam ser macios como treval, doces como mirim, frescos como polpa de guabiju...
CENA 03 – CASA DA TUDINHA
Tudinha está em casa com a mãe, no rancho.
BLAU
(OFF)
Corria à boca pequena que ela era filha do capitão Pereirinha, estancieiro, que só ali, nos Guarás, tinha mais de não sei quantas léguas de campo de lei, povoado, O certo é que o posto em que ela morava com a mãe, a sia Fermina, era um mimo; tinha de um tudo: lavoura, boa cacimba, um rodeíto manso; e a Tudinha tinha cavalo amilhado, só do andar dela, e alguma prata nos preparos.
Um velho chega no rancho.
BLAU
(OFF)
O velho, às vezes, ia por lá, sestear, tomar um chimarrão...
CENA 04 – Pátio da Carreira
Os cavalos estão enfileirados.
BLAU
Pois para a carreira essa, tinha acudido um povaréu imenso.E ela veio, também, com a velha. Velha, é um dizer, porque a sia Fermina ainda fazia um fachadão...Acharam que a cousa era trova de bêbado. E sem ninguém esperar, também apareceu o negro Bonifácio.
CENA 05 – O NEGRO
O Negro Bonifácio anda pela rua de braço com uma mulher.
BLAU
(OFF)
Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... mas, taura, isso era, também! Era o índio mais ladino daquelas bandas: mulherengo, contrabandista, pistoleiro. Mas o que mais provocava o estranhamento do povo daquelas bandas era que Bonifácio tinha ferros nos dentes. Diziam que o negro podia comer qualquer cousa graças aos arames que tinha na boca. Outros diziam que aquilo foi uma maldição. Outros que era castigo do tempo das charqueadas.
CENA 06 – INTERNA – BAR
O negro, acompanhado de uma outra mulher, entra num bar, quatro homens estão no balcão bebendo. Todos param o que estão fazendo e ficam cuidando o negro e sua mulher. Bonifácio pára em frente ao balcão. Tudinha entra, repara no negro e olha com raiva para ele.
Bonifácio se desvencilha da mulher e vai em direção de Tudinha. Fica frente a frente com a moça. Passa a mão pela cabeça dela. Todos no bar se assustam.
BLAU
(OFF)
Mas o Negro era um debochado! Passar a mão numa moça donzela anssim, na frente de todo mundo! A la puxa!
Bonifácio sorri. Tudinha se irrita e lhe dá um tapa no rosto.
BONIFÁCIO
Isso é o que eu estou pensando?
TUDINHA
(irritada)
Isso mesmo! É um duelo, e de adaga!
BONIFÁCIO
(Ri)
Como posso aceitar um duelo com uma chinoca!
Um homem grita no bar
HOMEM
Pos tomo como meu o desafio!
Bonifácio vai em direção ao homem. Olha para ele com tom ameaçador.
BONIFÁCIO
Nadico! Entonces queres um peleia comigo? Esquecestes porque teu pai, o Antunes gordo, é rengo?
Nadico começa a tremer.
TUDINHA
(grita)
Já que é difícil uma peleia, mudo minha proposta: uma carreira!
CENA 07 – CARREIRA
Os cavalos estão emparelhados. Tudinha fica a frente dos dois. Olha fixa para Nadico e depois para Bonifácio. Tudinha tira um lenço do colo e o deixa cair ao chão. Quando este toca o solo, os cavalarianos disparam. Eles seguem parelhos, Nadico, com olhar amedrontado, olha para Bonifácio, que sorri. O brilho do aparelho dentário de Bonifácio assusta Nadico que dá um esporaço profundo em seu cavalo que relincha. O Tordilho de Nadico dispara e vence a carreira.
Bonifácio chega, sorridente, já desacelerando o pingo. Nadico olha assutado para ele.
NADICO
Por que estás rindo, negro? Perdeste!
BONIFÁCIO
(debochado, olha para Tudinha)
De noite, trago as onças que apostei.
CENA 08 – INT/ BAR
Nadico, Tudinha e Siá Firmina bebem felizes no balcão. Entra Bonifácio.
BLAU
(OFF)
No barulho das saúdes e das caçoadas, quando todos se divertiam, foi que apareceu aquele negro excomungado, para aguar o pagode. Trazia na mão um lenço de sequilhos, que estendeu a Tudinha: havia perdido, pagava...
A morocha parou em meio um riso que estava rindo e firmou nele uns olhos atravessados, esquisitos, olhos como pra gente que já os conhecesse.., e como sentiu que o caso estava malparado, para evitar o desaguisado.
TUDINHA
(sem olhar para Bonifácio)
Entrega os três quartos de onças pra minha mãe.
BONIFÁCIO
(furioso)
Eu sou teu negro, de cambão!... mas não piá da china velha! Toma! (tira o saco de moedas da guaiaca e o atira na mesa).
Nadico pega o saco de moedas e atira na cara de Bonifácio. O Negro saca o facão e Nadico também. Bonifácio olha para os lados e vê mais quatro na sua volta.
BLAU
(OFF)
Vinte ferros faiscaram; era o Nadico, eram os outros namorados da Tudinha e eram outros que tinham contas a ajustar com aquele tição atrevido.
Bonifácio defende uma investida de facão. Nadico acaba lhe acertando um golpe no pescoço. O Negro cai e um bolo de homens se atira em cima dele. Numa explosão, Bonifácio joga seus oponentes longe. Um gaúcho tira uma boleadeira da guaiaca, gira e atira em direção ao Negro. Bonifácio desvia e o objeto acerta o bolicheiro. Cambaleante, Bonifácio se dirige a Nadico, que lhe ataca de facão novamente. Bonifácio defende, sorri, o brilho do aparelho do negro assusta Nadico, que paralisa. Bonifácio lhe dá um golpe cruzado de facão que o faz cambalear. Tudinha corre para acudir Nadico, que dá o último suspiro em seus braços. O negro se dirige a Tudinha. Uma mão pega uma chaleira. Um golpe de água atinge Bonifácio que cai urrando de dor. Siá Firmina está em pé com a chaleira vazia na mão. Bonifácio se levanta furioso, crava o facão na velha, a levanta, a gira e a joga no chão ao lado de Tudinha.
Tudinha começa mudar o seu semblante para o de uma pessoa enlouquecida.
BLAU
(off)
A Tudinha já não chorava, não; entre o Nadico, morto, e a velha Fermina estrebuchando, a morocha mais linda que tenho visto, saltou em cima do Bonifácio, tirou-lhe da mão sem força o facão e vazou os olhos do negro, retalhou-lhe a cara, de ponta e de corte... e por fim, espumando e rindo-se, desatinada um pouco bonita, sempre! um pouco ajoelhou-se ao lado do corpo e pegando o facão como quem finca uma estaca, tateou no negro sobre a bexiga, pra baixo um pouco um pouco vancê compreende?... um pouco e uma, duas, dez, vinte, cinqüenta vezes cravou o ferro afiado, como quem espicaça uma cruzeira numa toca... como quem quer estraçalhar uma causa nojenta... como quem quer reduzir a miangos uma prenda que foi querida e na hora é odiada!...
Os Gaúchos na volta ficam paralisados de horror diante da cena.
CENA 09 – EXT/ FIGUEIRA.
Tudinha e Bonifácio estão abraçados ao pé de uma figueira.
BLAU
(OFF)
Mais tarde vim a saber que o negro Bonifácio fora o primeiro a... a arreganhar a Tudinha;
Bonifácio está com outra mulher. Tudinha se atrevessa na frente deles. Ele a desdenha e segue adiante.
BLAU
(OFF)
Que ao depois tomara novos amores com outra fulana, uma piguancha de cara chata, beiçuda; e que naquele dia, para se mostrar, trouxera na garupa a novata, às carreiras, só de pirraça, para encanzinar, para tourear a Tudinha, que bem viu, e que apesar dos arrastados de asa daquela moçada e sobretudo do Nadico, que já a convidara para se acolherar com ele, sentira-se picada, agoniada da desfeita que só ela e o negro entendiam bem...; por isso é que ela ficou como cobra que perdeu o veneno...
Blau termina um chimarrão, olha para a tela.
BLAU
Até hoje me intriga, isto: como uma morena, tão linda, entregou-se a um negro, tão feio?...Seria de medo, por ele ser mau?... Seria por bobice de inocente?... Por ele ser forçudo e ela, franzina?...
Ah! mulheres!...Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma cousa... tudo é bicho caborteiro...; a mais santinha tem mais malícia que um sorro velho!.
Blau sai.
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